Muitos espectadores deixaram a sala de cinema em protesto às cenas de sexo entre Wagner Moura e Clemens Schick no filme Praia do Futuro. Abaixo a íntegra da crônica escrita por Matheus Pichonelli.
A reação contra as cenas de sexo entre Wagner Moura e Clemens Schick é irônica: é desse país afogado que o personagem foge no filme. Por Matheus Pichonelli
Cerca de 40 pessoas deixaram uma sala de cinema em Niterói (RJ) em repúdio às cenas de sexo entre os personagens de Wagner Moura e Clemens Schick no filme Praia do Futuro. Em João Pessoa (PB), segundo relatos postados nas redes sociais, para evitar debandada semelhante, o espectador é avisado já na bilheteria: “o filme tem cenas de sexo gay, você tem certeza de que quer assistir?”. Um carimbo de “avisado” serviria como atestado de que o cliente entrou na sessão em sã consciência. Seria uma vacina contra eventuais ofensas ao pudor: “não peça o dinheiro de volta, nós avisamos”.
A reação da plateia e o alarde em cima do tema são trágicos, mas não deixam de ser irônicos: é exatamente disso que trata o filme de Karim Aïnouz. No drama, Donato (Wagner Moura) é um salva-vidas da Praia do Futuro, em Fortaleza, que ajuda a salvar do afogamento um turista alemão, Konrad (Schick). No incidente, Konrad perde um amigo, que Donato deixa escapar. Do trauma nasce a amizade e uma atração. Da atração, uma fuga: é deste país que avisa dos perigos das cenas de sexo, como se fosse uma área imprópria para mergulho, que o personagem foge ao decidir se mudar para a Alemanha e nunca mais dar notícias.
No Brasil, Donato tem emprego, família e a adoração do irmão caçula, Ayrton. Vidrado em histórias de super-herois, Ayrton vê no irmão não apenas as virtudes dos personagens favoritos, mas o próprio salvador. Donato, para ele, é o Aquaman.
Durante boa parte do filme, não entendemos por que Donato decide romper relações com o seu país. Há, no filme, referências escassas à sua mãe, que manda para ele o almoço nos postos de salva-vidas e surge, vez ou outra, em referências dos diálogos com o irmão. A certa altura do filme, e da vida dos personagens, Donato e Ayrton, já adolescente, se reencontram em Berlim para um acerto de contas. Diante dos questionamentos inevitáveis, o antigo Aquaman se defende: “Eu não fugi. Eu voltei para casa. Aqui não preciso ficar dentro d’água para ser livre”.
É como se dissesse: eu apenas decidi ser o que eu sou em minha superfície – algo que, em casa, seria impossível, ou ao menos incompatível com o peso de ser o heroi que não erra nem decepciona. O negócio é se mandar para onde este “erro”, uma construção social, não existe: o futuro possível e sem juízo final. Em Berlim ele pode ser o que é, com quem quiser, sem selo nem patrulha – e sem os carimbos que alertam para o “perigo gay” em sua própria terra.
Essa fuga, que é também um retorno, envolve uma decisão dura: ao escolher como e com quem viver, escolhe-se com quem e como não viver. Ao se afastar da mãe, a elipse de uma sombra condenatória, é como se o personagem decidisse morrer em parte. Não há praia em Berlim, e não é fácil ser um nadador sem praia – como não é fácil encontrar um palco onde caibam todas as decisões. Daí o desejo, a princípio inviável, de encontrar uma praia sem água para o irmão que tem medo do mar. Seria a forma alegórica de encontrar um espaço entre a família e o namorado, que não só não teme como desafia o mar e a terra o tempo todo - ele é piloto de motocicleta; este lugar improvável é o único capaz de unir tudo, inclusive o que o mergulhador foi um dia. Não deixa de ser uma versão adulta para outro filme com a temática, Hoje eu Quero Voltar Sozinho, de Daniel Ribeiro.
É desta volta para casa, longe de casa, de que fala a obra de Aïnouz. Em O Céu de Suely, a personagem interpretada por Hermila Guedes volta para a cidade-natal no Nordeste com o filho e se perde à espera do marido que não vem. A ironia: antes de mudar de ideia, o marido jurava preferir morrer afogado a perdê-la. Em O Abismo Prateado, Alessandra Negrini percorre em círculos as ruas do Rio de Janeiro para absorver a fuga do marido. O mesmo acontece com o protagonista de Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo no filme dirigido por Aïnouz em parceria com Marcelo Gomes: o desejo de se perder para se encontrar no Sertão é a única esperança para o personagem de Irandhir Santos esquecer o abandono.
Em todos os filmes é pela elipse que se define a trama: temos a história dos abandonados e apenas a sombra de quem abandona. Desta vez a sombra se inverte: a ausência tem rosto, o rosto de Wagner Moura. Não vemos Ayrton crescer nem sabemos o que acontece com ele na ausência do irmão. A imagem da mãe, da mesma forma, é apenas uma projeção indefinida. A estrada que se alonga e se prolonga, porém, é a mesma de Hermila, João, Violeta, Djalma e José Renato, personagens dos filmes anteriores, e até de Alice, da série homônima também dirigida por Aïnouz. Todos estão em fuga para voltar para casa.
Essa estrada, desta vez em Berlim, une Donato aos antecessores. Não se trata, portanto, de um filme homoerótico, mas de um filme sobre fuga, no contexto de uma obra, cujo personagem por acaso é gay. A reação diante das cenas do filme na vida real é a materialidade desse desejo dos personagens: desaparecer para poder existir.
Ao fim das filmagens, Moura manifestou o desejo de que as cenas de sexo com outro homem não se tornassem um assunto. Queria evitar o rótulo de “filme gay”. E preferia que a relação entre eles fosse tratada com naturalidade. O desejo passou longe. Não só as cenas viraram assunto como causaram choque e recalque. É desse país que ator e personagem decidiram tomar distância – “não está dando para viver aqui”, disse Moura em entrevista recente. Impossível não imaginar seu personagem batendo em seu ombro com uma certa solidariedade: “não estamos fugindo, estamos apenas voltando para casa”.